Nem tolerância e nem mercadoria: o nosso orgulho é anticapitalista

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Militantes do Ecoar participam de um ato e seguram uma faixa em que se lê "Eles combinaram de nos matar. Nós combinamos de não morrer - Ecoar". Uma militante segura uma bandeira LGBT e, atrás dela, ouutro militante segura um cartaz, em que está escrito "O capital quer a nossa extinção - Ecoar".

Este não é um texto contente para celebrar o mês do orgulho. Acreditamos sobretudo que a nossa existência, que ousa por si pôr em xeque o sistema opressor, deva ser celebrada. E o fazemos no cotidiano, mas o nosso objetivo na escrita desta peça vai além. Viemos por meio desse texto denunciar a situação que é imposta a nós e nosses camaradas, e apontar os caminhos pelos quais podemos virar este jogo. Para isso, é necessário luta, e é necessário entender as condições das correntes que nos aprisionam.

Dados apontam índices maiores de insegurança alimentar dentre as pessoas LGBTQIA+ quando comparadas aos indivíduos alinhados à cisnorma, assim como são conhecidos os efeitos de um amplo sistema de discriminação estrutural no mercado de trabalho, que funciona em nosso detrimento. Esta situação é ainda mais grave para as pessoas mais marginalizadas dentre a nossa comunidade, tendo como alvo de maior carga indivíduos negres e travestis, que frequentemente ocupam os postos de trabalho mais precarizados e pouco remunerados, largados à informalidade e à própria sorte. Isso não é um mero acaso: a situação se repete porque o sistema capitalista tem um interesse especial em nos manter famintos e em perigo: é da nossa situação como cidadãos de segunda classe que é possível reforçar a instituição da família para a reprodução social.

Ainda assim, companhias locais e multinacionais insistem em “celebrar o orgulho” conosco mês de junho após o outro. Esquecem, ou jogam pra baixo do tapete, que nosso orgulho é conquistado de luta, tijolos jogados de barricadas, resistência à prisão e desrespeito à ordem pública, justamente porque essa ordem vem da dominação. Nos enxergam como produtos para serem adquiridos e descartados dentro do jogo da opinião pública, mas os rejeitamos. Que orgulho é esse, que não nos considera dignos de sequer salário suficiente? Que orgulho é esse, que lucra em cima da nossa exploração?

Os rejeitamos porque a via que nos oferecem não leva à libertação de verdade. Não seremos incluídos pelo consumo em um sistema que violenta nossa existência por serventia ao capital. Capital esse que tem interesse que continuemos a nos contentar com uma cidadania de segunda classe, que não ameace a família nem o papel que as normas sociais têm na produção. Não lutamos por um “amor” que possa ser assimilado e varrido quando imprudente. Lutamos para existir sujeitos, fora dos planos desse projeto nefasto e conscientes do papel que ocupamos na estrutura de classe. Lutamos de um ponto de vista que é irremediavelmente anticapitalista e revolucionário.

Durante a pandemia, devido ao contato constante o qual somos forçades a ter com nossos núcleos familiares, foi observado que casos de violência doméstica contra mulheres e pessoas LGBTQIA+ aumentaram. É importante lembrar que a pandemia de longe não é a origem dessa violência, seja em que escala for. A família nuclear sob o capitalismo toma uma forma inerentemente violenta a minorias, sobretudo contra figuras femininas e pessoas LGBTQIA+. E não à toa, visto que a existência dessas pessoas, ainda que com um caráter cis e branco, desafia diretamente essa família nuclear imposta a nós. Dentro dessa forma familiar, as crianças são vistas enquanto propriedade dos pais, portanto tranquilamente suscetíveis às suas vontade e expectativas aos olhos da sociedade. Assim, o conflito propiciado pela misoginia e LGBTQIA+fobia frequentemente encontra nesses espaços solos férteis para suas primeiras sementes de socialização e condicionamento de nossos corpos.

No campo da saúde, frequentemente as pessoas LGBTQIA+ lidam com constrangimentos e processos de patologização de suas identidades e corpos. Até 2019, a transexualidade figurava na classificação internacional de doenças (CID). Para acessar direitos elementares, travestis e transexuais precisavam apresentar laudos médicos que as qualificassem como doentes. No Brasil, em 2017, uma decisão judicial de 1ª instância tentou suspender os efeitos de uma resolução que impedia as terapias de reversão da orientação sexual. A ciência moderna estabeleceu os marcos de uma normatividade corpórea que opera para enquadrar os corpos na binariedade, privando pessoas dissidentes do acesso à saúde como um direito social. Por esse motivo, a bandeira da despatologização sempre esteve entre as pautas prioritárias de nossa luta.

Em 2021, completamos uma década de instituição da Política Nacional de Saúde Integral LGBTQIA+. Contudo, em face dos retrocessos que vem ocorrendo, a única comemoração possível é a luta. O governo federal já dificultou o acesso a medicamentos na política de HIV/AIDS, retirou do site do Ministério da Saúde cartilhas sobre saúde para a população LGBTQIA+ e trabalha para impedir o acesso da juventude à educação sexual, eixo transversal dos parâmetros curriculares nacionais que é fundamental para uma política de saúde baseada na prevenção. Some-se a isso o subfinanciamento do SUS, que perdeu mais de 20 bilhões com a Emenda Constitucional 95, penalizando as políticas recém implantadas, como a ampliação da rede de ambulatórios LGBTQIA+.

É dessa forma que opera um Estado que tem Deus e a família tradicional como sua base, e que trata como “primitivo” ou “coisa do capeta”, passível de uma punição cada vez mais naturalizada por seus discursos, aquilo que não se adequa à cisheteronormatividade. Um Estado de inúmeras figuras midiatizadas por suas declarações assustadoras, dentre elas a pastora evangélica Damares Alves, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), que com medidas sorrateiras é uma das principais responsáveis por barrar os avanços nas ações de assistência à população LGBTQIA+ no país.

Em 2020, o MMFDH não aplicou um único centavo dos R$ 4,5 milhões orçados para a Diretoria de Políticas de Promoção e Defesa dos Direitos LGBTQIA+. No ano de 2019, o Ministério usou 4,3% dos R$ 2,6 milhões previstos. A imposição de uma estrutura familiar tradicional também impacta diretamente na concepção de família e do direito de exercer a sua própria identidade por parte de crianças. Defensora dos menores, Damares Alves foi responsável por publicizar, no ano passado, o caso de uma menina de 11 anos que engravidou após ser estuprada por um tio, no Espírito Santo. A pastora, inclusive, enviou representantes do Ministério para a cidade onde o aborto seguro correria, assegurado por lei, gerando tumultos em frente ao hospital. Mesmo aos gritos de protesto de pessoas que consideravam a interrupção da gravidez um crime, o procedimento foi realizado. É também a pasta de Damares Alves a responsável por censurar obras literárias voltadas ao público infantil que contenham figuras como bruxas, duendes e outros seres fantásticos, historicamente parte da cultura brasileira, atendendo diretamente às demandas da bancada evangélica.

O trabalho exercido pela ministra configura-se, portanto, como uma opressão violenta ao livre desenvolvimento das identidades de crianças e jovens velada de proteção à infância. Uma conduta que, aliada ao discurso LGBTQIA+fóbico de Bolsonaro e seus apoiadores, só tende a agravar o cenário já desesperador do país que mais mata pessoas trans em todo o mundo; onde uma mulher trans é queimada viva e a mídia pouco ou quase nada fala sobre isso; onde um ativista gay, militante do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), é assassinado a tiros e tem seu corpo carbonizado dentro do seu próprio carro; onde o direito à vida é diariamente ameaçado e não se tem o luxo de optar pela passividade, sobretudo se o seu corpo LGBTQIA+ não for branco.

Nossa luta é também internacionalista, solidária aos corpos que vivem sob a criminalização ostensiva das suas sexualidades em países que operam até os dias atuais com pilares calcados pelo colonialismo europeu. Em 2020, em todo o mundo, 68 países ainda criminalizavam a relação homossexual entre indivíduos. Em 8 deles, a punição prevista era a pena de morte. Os dados são da International Lesbian and Gay Association (ILGA), que também revelam que a intensificação de legislações punitivas em relação a pessoas LGBTQIA+ está presente, em grande parte, em países do continente africano. Em 2014, o então presidente da Uganda, Yoweri Museveni, pôs em vigor uma lei que pretendia frear a “promoção da homossexualidade” na África. A lei previa a prisão perpétua como pena máxima. Outro caso que ganhou ampla notoriedade na mídia internacional ocorreu em 2019, quando Paul Makonda, prefeito de Dar es Salaam, cidade da Tanzânia, lançou uma “caça” à comunidade gay, que tinha como objetivo incentivar denúncias via telefone a pessoas que mantinham relações com indivíduos do mesmo gênero. Na época, o governo inaugurou, inclusive, um comitê de vigilância de homossexuais.

Os dois acontecimentos ilustram o legado do colonialismo português e do colonialismo britânico na concepção da homossexualidade como um “vício contra a natureza” nos países do Sul global. Uma concepção apoiada não somente em legislações criminalizadoras herdadas de nações do continente europeu, mas também nos valores tidos como dignos de uma “civilização” pregados pela burguesia cristã, que se manifestam sobretudo na imposição da monogamia, da norma heterossexual e na promoção de uma visão casta da sexualidade, que no máximo “tolera” a existência de pessoas LGBTQIA+ em alguns Estados, sem uma real promoção de políticas públicas que assegurem a sua saúde, sua segurança, seu bem-estar, sua educação e seu desenvolvimento profissional. Por isso, nossa luta é internacionalista, solidária e também anti-imperialista.

Nossa luta é anticapitalista, internacionalista, anti-imperialista, mas também precisa ser antirracista. O branqueamento recorrente na visibilidade da luta LGBTQIA+ se caracteriza enquanto uma ferramenta de sabotagem para a organização da luta, pois sabemos que as pessoas negras pobres e as travestis da comunidade estão na linha de frente da nossa violência e extermínio sob o ponto de vista da luta de classes. A nossa maioria está bem longe dos bairros nobres brancos e elitizados. No entanto, essa visibilidade embranquecida e cooptada pelo neoliberalismo por uma concepção de inclusão através do consumo não dá mais conta de se manter, nem mesmo entre a nossa parcela mais elitizada, quando nos damos de cara com um governo do teor de Bolsonaro. Sua política explicitamente pautada na família atravessa diretamente esse processo, e isso tensiona cada vez mais nossa comunidade a se radicalizar e se organizar frente a tantos ataques.

Embora as esquerdas como um todo sejam identificadas como apoiadoras da comunidade LGBTQIA+, essa relação ainda é marcada por tensões e conflitos. Quantas de nós já não ouvimos em espaços da esquerda que a luta LGBTQIA+ é secundária, ou que é uma luta meramente identitária e não de classe, que contribui para a fragmentação da luta revolucionária? Argumentos como estes são ecos de uma tradição política hostil à diversidade sexual e de gêneros na esquerda. Ecos do retrocesso stalinista no campo da liberdade sexual, retroagindo nas conquistas da revolução que havia eliminado a legislação discriminatória do período czarista.

No mês do orgulho LGBTQIA+, queremos ecoar outras vozes. Aquelas que compreendem que a nossa classe é diversa em corpos, identidades de gênero e sexualidades. Que a reconhecemos no operariado masculino fabril, mas igualmente na precariedade da vida das mulheres trans e travestis nas esquinas do Brasil. Sabemos que a cis-heteronormatividade é uma poderosa estrutura ideológica a serviço da reprodução capitalista, disciplinando cada corpo a assumir uma posição econômica, política e sexual que mantenha as engrenagens funcionando. Por isso, a luta LGBTQIA+ que afirmamos se volta contra o sistema que nos empurra para um lugar de subalternidade.

Não será possível interromper a máquina capitalista sem questionar fundamentos ideológicos como a cis-heteronormatividade e sem destruir as estruturas que dela derivam, a exemplo da família. No Manifesto Comunista, Engels e Marx afirmam que a burguesia “rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a meras relações monetárias”. Ao defendermos a destruição da estrutura família, centrada nas “meras relações monetárias”, não queremos atacar o afeto sincero que possuímos pelas pessoas que nos são próximas. Queremos, pelo contrário, assegurar as condições sociais para que tal afeto se desenvolva na sua plenitude, sem as amarras que hoje o aprisionam.

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