Carta-programa

  1. “Quem somos”
  2. Pensando historicamente: uma análise dos nossos tempos
  3. A juventude brasileira hoje
  4. Juventude, explorados e oprimidos em movimento: que formas de luta?
  5. O papel de uma ferramenta política de juventude neste contexto
  6. Princípios programáticos

1. “Quem somos”

As vozes de pessoas exploradas e oprimidas sempre existiram. Sempre gritaram, em oposição aos poucos donos do poder. Não é necessário que venha alguém, ou alguns, dizer que faltam vozes. Não faltam. Toda a surdez, neste caso, é conveniente. Não somos surdos. Sabemos que essas vozes já existem. Queremos somar forças. Queremos ajudar a disseminar, a difundir, a mostrar para o mundo que os indignados e indignadas estão aqui e não irão se calar diante das crueldades apresentadas como “normais”. Queremos ajudar a ecoar as vozes, os sonhos e as lutas da classe trabalhadora de todo o planeta.

Somos o coletivo Ecoar ⎼ Juventude Ecossocialista. Uma organização de juventude ecossocialista, feminista, antirracista e antiLGBTfóbica. Fomos fundados a partir da necessidade de criar uma ferramenta política de juventude para intervir na sociedade, nas lutas e nos diversos movimentos. Um instrumento para fazer avançar o nível de consciência, o grau de organização e a mobilização das pessoas exploradas e oprimidas, a partir de uma perspectiva marxista e revolucionária.

Este coletivo foi inicialmente fundado por jovens da Rebelião Ecossocialista¹, tendência interna do PSOL e parte da seção brasileira da IV Internacional. Porém, trata-se de uma ferramenta constituída para ir cada vez mais além. Organizar jovens da Rebelião Ecossocialista e jovens independentes (sem vinculação partidária) de todo o Brasil. Do nosso ponto de vista, basta estar disposto a construir coletivamente uma organização que é portadora de um projeto estratégico de emancipação; que, participando dos diversos espaços de intervenção, respeita os encaminhamentos coletivos na sua atuação em territórios, universidades, escolas, locais de trabalho e moradia; e que está orientada pela busca da transformação social radical.

Se nossos ecos são amplos, também não estão restritos ao presente. Nossos passos vêm de longe. Como sugeria Walter Benjamin, nos nutrimos do espírito de redenção, da memória, de todos e todas que foram explorados e oprimidos ao longo da história. As vozes destes e destas que antes sofreram no passado nos entrecortam, nos enlaçam, nos direcionam. Por isso, partimos de algum lugar, ou melhor dizendo, de alguns lugares, de origens plurais que desejam um mesmo horizonte: a emancipação.

Neste sentido, nos inspiramos no espírito de insubordinação e revolta presente na tradição vermelha e internacionalista do marxismo revolucionário. Trata-se de um marxismo que valoriza os fundamentos teóricos estabelecidos por Marx e Engels e que reconhece o desenvolvimento teórico que se deu em meio a uma longa experiência histórica de luta das pessoas exploradas e oprimidas. Uma síntese disso é encontrada nos clássicos do marxismo ⎼ além de Marx e Engels, também Lênin, Rosa Luxemburgo, Leon Trótski e Antonio Gramsci ⎼ e enriquecida por meio de diversas e plurais contribuições desta ampla tradição que o marxismo representa. Duas figuras intelectuais têm destaque para nós por seu papel de sistematização e atualização crítica da teoria marxista para lidar com os problemas dos novos tempos: Ernest Mandel e Daniel Bensaïd. Estando em solo brasileiro e latinoamericano, também nos inspiramos nos teóricos e militantes do nosso país ou de nossa região, que buscaram desvendar as particularidades presentes na periferia do sistema capitalista mundial (na América Latina ou mais especificamente no Brasil) e extrair as conclusões a respeito das marcas que nos foram deixadas pelo processo de desenvolvimento desigual do capitalismo e por um passado brutal de colonização e escravidão.

Deste ponto de vista, temos clareza de que não sustentamos um dogma, mas defendemos um marxismo aberto, crítico e autocrítico. Plural, como as vozes que nos dão razão de ser. Um marxismo vivo e forjado no calor das lutas, que nos ajude a elaborar nossa própria visão de mundo, da perspectiva das pessoas exploradas e oprimidas. Um marxismo que seja sobretudo um instrumento de análise da realidade e um guia para a nossa ação. O que só pode existir em meio ao livre debate de ideias e vinculado à prática comum e coletiva.

Ao longo desta carta-programa, buscaremos apresentar, principalmente, porque entendemos que a conjuntura exige uma organização política localizada nos marcos aqui delineados. Não pretendemos ser a única e exclusiva resposta, ou um grupo que se auto-proclama como “a” direção que irá conduzir a humanidade à sua emancipação. Somos algumas vozes ⎼ e queremos ser muito mais ⎼ que pretendem entoar coletivamente o coro da liberdade. Ecoar, camaradas. Ecoar nossas vozes, nossos sonhos, nossas lutas e nossas esperanças. Ecoar as experiências do passado. Ecoar as batalhas do presente. Ecoar o futuro, que não será dos poucos que esmagam, mas dos muitos e muitas que resistem e se revoltam.

¹ No momento de fundação do coletivo, a militância do Ecoar organizada em alguma tendência interna do PSOL construía a Comuna. Esta organização, fundada em 2017, se dissolveu em maio de 2023 e deu origem à Rebelião Ecossocialista. Desde então, esta é a corrente partidária que constrói o coletivo Ecoar ao lado de militantes independentes do PSOL e militantes sem vínculo partidário.

2. Pensando historicamente: uma análise dos nossos tempos

A ascensão do neoliberalismo

Desde os anos 1970, o capitalismo entrou em um novo estágio de seu desenvolvimento. Foram anos que marcaram o início do que veio a ser conhecido como neoliberalismo. Uma série de transformações econômicas, mas também sociais, políticas, culturais e ideológicas se deram na nossa sociedade. Seu vetor fundamental foi uma ofensiva do capital sobre o trabalho e o aprofundamento da espoliação do chamado “terceiro mundo”.

Do ponto de vista econômico, viu-se uma expansão brutal das relações capitalistas e da financeirização por todo o planeta. O que foi acompanhado, no plano social, por uma progressiva “flexibilização” e precarização das condições de trabalho e de vida da maioria da classe trabalhadora. Uma série de conquistas sociais e sistemas de proteção social foram atacados, em prol da privatização de serviços públicos e empresas públicas. De modo geral, o grande objetivo foi favorecer o lucro das classes dominantes. Na luta de classes internacional, a queda do Muro de Berlim (1989) e a restauração capitalista na União Soviética (1991) expressaram uma vitória material e ideológica do grande capital.

No cenário brasileiro, foi primeiramente no governo Collor de Mello e, depois, no governo FHC que se deu um intenso processo de privatizações que desmontou o Estado. Diversas mudanças na legislação restringiram fortemente os investimentos em políticas públicas e sociais. E a geração de superávit para o pagamento da dívida pública se transformou em uma das grandes prioridades nacionais, prejudicando cada vez mais a capacidade de atender as demandas básicas da maioria dos brasileiros.

Vivemos ainda hoje sob os marcos fundamentais da época que se abriu neste momento. Uma época sombria em que se tornou mais fácil conceber o “fim do mundo” do que o fim do capitalismo. Em meio à barbárie capitalista, nos vemos diante de tempos distópicos.

A crise mundial de 2007-8 e o Brasil

Com a crise mundial do capitalismo que eclodiu em 2007-8, a ofensiva do capital sobre as pessoas trabalhadoras se intensificou. Seu objetivo era recuperar as taxas de lucro das classes dominantes, ou ao menos atenuar a sua queda. Este cenário tornou muito mais difícil a continuidade, por parte de diversos governos ao redor do mundo, de estratégias e políticas de “conciliação de classes”, que buscassem atender, ao mesmo tempo ⎼ mas sempre de maneira profundamente desigual ⎼, aos interesses da classe trabalhadora e dos setores dominantes.

No Brasil, este processo de ofensiva teve sua intensificação marcada pelo “ajuste fiscal” iniciado pelo governo Dilma Rousseff (PT) em 2015, cortando bilhões de investimentos sociais da área da saúde, da previdência e da educação. Diante dos cortes, Joaquim Levy, seu Ministro da Fazenda, foi apelidado de “mãos de tesoura”.

Mas este processo deu um salto de qualidade com o golpe institucional de 2016, que alçou à presidência Michel Temer (MDB), então vice-presidente de Dilma. Seu objetivo foi aprovar, de maneira mais acelerada e intensa, os retrocessos e contrarreformas sociais que estavam na agenda das classes dominantes. Uma verdadeira “ponte para o passado” (a exemplo de sua “PEC da morte”, que congelou os investimentos sociais por 20 anos e que precisa ser urgentemente revogada). Mas Temer não conseguiu levar adiante a sua principal medida: a (contra)reforma da previdência. Milhões de brasileiros, conscientes de que seus interesses estavam em jogo, se mobilizaram e fizeram uma greve geral em 28 de abril de 2017. Foi esta demonstração de forças que fez o governo recuar.

No entanto, esta expressiva demonstração de forças da classe trabalhadora em 2017 não impediu o avanço geral dos ataques aos direitos sociais e às liberdades democráticas dos explorados e oprimidos. O espaço democrático, historicamente restrito na periferia do capitalismo e particularmente no Brasil, se fechou ainda mais. É nestes marcos de explicitação e aprofundamento do caráter autocrático do Estado brasileiro que podemos entender a ofensiva reacionária que teve como um de seus pontos altos o assassinato de Marielle Franco, nossa companheira de lutas e vereadora mulher, negra, periférica e socialista. Quem mandou matar Marielle e Anderson?

O governo Bolsonaro

Esta ofensiva do capital sobre os explorados e oprimidos entrou em um novo estágio a partir da eleição de Jair Bolsonaro. Seu projeto de extrema-direita é ultraliberal na economia, conservador nos costumes e autoritário na política. Desde que foi eleito em 2018, tais características se tornaram cada vez mais evidentes e inclusive se agravaram.

A campanha eleitoral de Bolsonaro foi marcada por um discurso que era na aparência antissistêmico. Na ausência de alternativas sólidas e claras à esquerda, ele conseguiu capitalizar o anseio por mudança de grande parte do povo brasileiro, que estava profundamente insatisfeita com os sucessivos governos que pouco mudaram suas vidas e com a sua realidade cotidiana de violência, miséria e desigualdade. A rejeição do povo ao sistema é mais do que legítima: não defendemos essa ordem existente. Infelizmente, o bolsonarismo entendeu isso melhor do que muitos setores da esquerda, e se aproveitou deste sentimento para seus fins nefastos.

A “agenda” que apresentou se centrava basicamente na crítica à corrupção generalizada ⎼ vinculada, em seu discurso, sobretudo ao PT como suposto representante da “esquerda” em geral ⎼, na reivindicação de um endurecimento militarista nas políticas de segurança pública, na perseguição à esquerda e aos movimentos sociais por meio de seu antipetismo reacionário e no conservadorismo violento quando se tratava dos direitos das mulheres e da população LGBT. Como podemos ver, sua aparente “radicalidade” se sustentava na verdade em um profundo compromisso com as classes dominantes e medidas regressivas contra a maioria do povo brasileiro.

Logo nos primeiros meses de seu governo, no entanto, foram expostos pela grande mídia envolvimentos de Bolsonaro e sua família com casos de corrupção (vide caso Queiroz). Além disso, sua suposta preocupação com a questão segurança pública serviu para expressar um verdadeiro discurso de ódio, fortalecedor do genocídio e do encarceramento da população pobre e negra do país.

Marcados pela ampla divulgação de informações falsas, a campanha eleitoral e o início do governo de Bolsonaro serviram para demonstrar sua verdadeira face: trata-se de mais um político voltado à manutenção da ordem capitalista, da opressão das pessoas exploradas e oprimidas, além de um propagador de discursos de ódio contra o povo brasileiro, as mulheres, as pessoas negras e LGBTs. Nele, não há nada de efetivamente antissistêmico, não há nada de combate à corrupção e não há nada de preocupação real com a segurança pública.

Os anos de 2019 e 2020 foram marcados por incontáveis ataques do governo Bolsonaro ao conjunto da classe trabalhadora, por meio de medidas contra as condições de trabalho, a educação, o meio ambiente, a previdência, os direitos das mulheres e favorecendo o aumento da repressão estatal. Vale lembrar o marcante “Dia do Fogo”, em que a floresta amazônica entrou em chamas. A população indígena vem sofrendo ainda mais com a intensificação de invasões às suas terras. A educação pública e a ciência foram alvos de duros cortes de investimento, assim como de uma busca por aprofundar o seu processo de privatização (“Future-se”, do ministro Weintraub). A (contra)reforma da previdência significou um verdadeiro desmantelamento da previdência pública, deixando para boa parte da classe trabalhadora o nefasto horizonte de ter de trabalhar até morrer. Além disso, a aprovação do pacote anticrime de Sérgio Moro nos leva a um patamar ainda mais grave de repressão estatal, que terá como consequência o aumento do genocídio e do encarceramento em massa da população pobre e negra do país.

A eleição deste presidente genocida nos colocou em um cenário de forte repressão e ataque aos trabalhadores, além de disseminar e fortalecer discursos autoritários marcados pela violência, pela intolerância e pelo obscurantismo negacionista e anticientífico. Um desafio posto ao conjunto das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros neste momento é combater a extrema direita e ao mesmo tempo construir uma alternativa radical e efetivamente antissistêmica. A esquerda radical, na qual nos inserimos, tem um papel fundamental neste processo. É preciso ter um compromisso de avançar na prática a construção da unidade dos explorados e oprimidos nas lutas em defesa de seus interesses, dos seus direitos sociais e das liberdades democráticas.

A pandemia do coronavírus

A pandemia da COVID-19 chegou ao Brasil em meio a este cenário de barbárie social. A crise do novo coronavírus passa então a integrar o quadro mais geral de crise da civilização capitalista (isto é, a crise do modo de vida engendrado por este sistema), o que eleva nossos desafios a um outro patamar. Se é verdade que toda a humanidade é atacada pelo vírus, não podemos esquecer que as classes exploradas e os setores oprimidos são os que mais sofrem. Por exemplo, enquanto o primeiro caso de contaminação registrado no Brasil foi de uma pessoa que havia retornado de uma viagem à Europa, o registro da primeira morte causada pelo vírus foi de uma empregada doméstica obrigada a seguir trabalhando em meio à pandemia. E de maneira geral, em nível planetário, os povos do “sul global” são também os mais afetados, pois vivem sob péssimas condições sanitárias, ausência de saneamento básico, em cidades e bairros extremamente densos e com governos locais e classes dominantes relutantes em tomar medidas de proteção e seguridade social.

É o conjunto da classe trabalhadora, em especial os seus setores mais precarizados, as mulheres, os negros e as populações periféricas que mais sofrem com este agravamento da crise. É fundamental identificar que a globalização neoliberal, ao destruir os serviços públicos e precarizar as relações de trabalho em todo o mundo, criou o cenário para uma catástrofe social generalizada.

No caso brasileiro, o que vimos ao longo destes meses de pandemia foi a completa e mortífera irresponsabilidade de Bolsonaro. Primeiro, negando a seriedade do impacto sanitário e social do vírus. Depois, defendendo o uso de medicamentos sem eficácia comprovada ⎼ a cloroquina, que inclusive agrava a condição de saúde de determinados pacientes. E ainda, um dos aspectos mais graves: rejeitando a necessidade da quarentena e do distanciamento físico/social no país (o gráfico que mostra o desenvolvimento da curva da doença no Brasil expressa o tamanho da irresponsabilidade do governo). Em meio a esta situação de calamidade social, o Brasil está em seu 3º ministro da saúde. Inicialmente, estava Luiz Henrique Mandetta ⎼ representante dos interesses dos planos de saúde privados; depois, assumiu Nelson Teich, que se mostrou absolutamente incapaz e inepto para apresentar uma perspectiva de combate à pandemia; por fim, quem assumiu o posto na condição de ministro interino foi o militar Eduardo Pazuello, sem qualquer experiência relevante na área da saúde (o que simboliza também a enorme ocupação de cargos no governo por parte dos militares). Isto são elementos que indicam a gravidade do quadro sanitário no Brasil.

O impacto social da pandemia tem sido brutal. O desemprego aumentou de maneira explosiva, entre trabalhadores/as formais e informais. As condições de trabalho estão ainda mais dramáticas, com redução de salários, pessoas trabalhando com mais intensidade e por muito mais tempo. A repressão nas periferias e a violência policial aumentou neste período, assim como a violência doméstica contra as mulheres e população LGBT. Os povos indígenas e originários foram profundamente expostos ao vírus, sendo negligenciados por parte do governo. Passamos da casa dos 100 mil mortos oficiais. Não são números, são vidas! Vidas de trabalhadores/as, pessoas pobres, negras, periféricas. Vidas que não precisariam ser perdidas, caso tivéssemos lidado com a pandemia de outra maneira.

Cerca de 67 milhões de brasileiros passaram a depender do auxílio emergencial de R$ 600,00. Um direito, aliás, que ir muito além deste valor ⎼ mas que o governo inicialmente se colocou contra e, quando viu ser inevitável, propôs o valor revoltante de R$ 200,00. Hoje, o governo encontra-se em uma situação onde precisa manter o auxílio que está assegurando a sua popularidade social (apesar de casos de corrupção como o “caso Queiroz” e de sua responsabilidade diante dos impactos da pandemia), mas ao mesmo tempo precisa atender às exigências de ferro do mercado no sentido de políticas de austeridade e ajuste fiscal, expressas pela figura do ministro da economia Paulo Guedes.

É muito importante lembrar que nestes meses de pandemia o povo brasileiro não ficou passivo. Diversas e expressivas manifestações de “Fora Bolsonaro” foram entoadas ao longo das primeiras semanas. Depois, protestos antifascistas e antirracistas ocuparam as ruas do Brasil (aliás, em sintonia com o que se passava no mundo no mesmo momento). Trabalhadores/as de aplicativos (iFood, Rappi…) e torcedores/as antifascistas estiveram à frente de mobilizações como estas, nas quais se somaram muitos movimentos sociais e populares, organizações da esquerda radical e também pessoas em ato de revolta e solidariedade.

Deste quadro geral, só podemos concluir com a afirmação de que é preciso seguir defendendo de maneira intransigente a adoção de medidas de emergência em todos os lugares do planeta, tendo como vetor fundamental de orientação a solidariedade econômica, social e humanitária. Medidas estas que só podem ser levadas até o fim nos marcos de uma perspectiva anticapitalista, de uma transição ecossocialista. Não há outra alternativa possível.

Em defesa da memória histórica

Mas todo este cenário que descrevemos, de ofensiva brutal do capital, não se deu sozinho. Foi acompanhado de um movimento de resposta por parte das pessoas exploradas e oprimidas. A crise mundial de 2008 abriu caminhos para uma onda global de protestos, que conectou demandas pontuais e locais com o grito insubmisso da classe trabalhadora contra o sistema capitalista. No Brasil, diversos processos de mobilização ocorreram e mesmo se intensificaram desde junho de 2013 (em alguns casos, até antes). Em uma breve referência, lembramos as marcantes lutas dos estudantes secundaristas, as lutas contra o impeachment de Dilma, a primavera feminista e também a então vitoriosa luta contra a reforma da previdência de Temer. Lembramos disso para explicitar as contradições do período em que vivemos: as classes dominantes não agem sozinhas, os setores subalternos também lutam. O cenário é de ofensiva do capital, mas no marco geral de uma polarização da luta de classes.

É também nossa tarefa manter viva a memória das pessoas exploradas e oprimidas e não esquecer do que nos trouxe até aqui. Vivemos durante 13 anos sob governos do Partido dos Trabalhadores (PT), cuja marcas fundamentais foram as de um programa enquadrado na manutenção da ordem burguesa e de suas desigualdades brutais e uma estratégia de gestão do capitalismo brasileiro através de uma política de “conciliação de classes”. Foi um período que nos mostrou que a conciliação entre a classe que explora e a classe que é explorada pode até aparentar funcionar por determinado período, mas tem um limite claro que jamais será transponível: os interesses das trabalhadoras e trabalhadores e das classes dominantes são inconciliáveis.

Essa é uma lição histórica para nossas lutas. A conciliação de classes mostrou-se não só insuficiente para atender as necessidades das pessoas exploradas e oprimidas, mas, para além disso, provou favorecer globalmente os interesses das classes dominantes. Do ponto de vista das pessoas exploradas e oprimidas, os governos de colaboração de classes petistas levaram a uma profunda desorganização dos movimentos populares. Mais do que isso, implicaram um processo de institucionalização e burocratização de diversos movimentos, que se submeteram a uma razão de Estado e deixaram de lado a mobilização e a luta como via principal para a conquista de direitos.

No âmbito da educação, por exemplo, embora tenham promovido um maior acesso de parcela dos jovens brasileiros ao ensino superior, medidas como o Financiamento Estudantil (FIES) e o Programa Universidade para Todos (ProUni) ⎼ que foram o centro da política educacional dos governos petistas ⎼ funcionaram principalmente, no longo prazo e sob a perspectiva de uma análise totalizante, para enriquecer os grandes oligopólios da educação (como a Kroton Educacional, maior empresa do ramo da educação do Brasil), sem melhorar as condições materiais de vida desses jovens de maneira significativa.

Também foram anos marcados por um assustador crescimento da população carcerária e pela ausência de políticas de desencarceramento. A aprovação e sanção da Lei de Drogas em 2006 foi responsável por aumentar a punição de pessoas presas por tráfico e intensificou a política de “guerra às drogas” (que se trata, na verdade, de uma guerra às pessoas negras e pobres). O abandono da reforma agrária por parte dos governos petistas e a escolha de Kátia “Motosserra” Abreu para o Ministério da Agricultura de Dilma em 2015 mostraram que o compromisso era, no fundo, com a proteção e o fortalecimento do agronegócio, permitindo o desmatamento das florestas e a expansão do uso de agrotóxicos.

O levante expresso nas jornadas de luta em junho de 2013 mostraram a potência da revolta popular. A população estava nas ruas por todo o Brasil reivindicando saúde, educação, transporte e, no fundo, uma melhora generalizada dos serviços públicos. Junto a isso, expressavam-se com força a indignação diante da corrupção, que é estrutural no Brasil e nos países capitalistas de maneira geral, e uma profunda descrença diante do sistema político tradicional. As reivindicações expressavam na prática a impossibilidade de uma vida digna sob o regime capitalista, o que serviu para mostrar àqueles que lutam por sua derrubada que a resposta para isso está nas ruas e nas mobilizações do povo trabalhador.

Além disso, é inegável que junho de 2013 expressou também um descolamento significativo de parcelas da população brasileira em relação ao PT, fruto de uma frustração e decepção históricas com o partido. No fim das contas, os governos petistas estavam encarnando a repressão ao movimento de junho de 2013 (nas figuras não só de Dilma, mas também, por exemplo, de Haddad, em São Paulo, ao lado de Geraldo Alckmin do PSDB).

Aliás, o discurso de Bolsonaro, sustentado parcialmente em um “antipetismo reacionário”, foi vitorioso em boa parte porque encontrou eco em uma legítima “rejeição popular” ao PT, advinda de razões justas, fruto do descontentamento, da frustração e da decepção com este partido que um dia já havia se apresentado como um agente da transformação social radical da sociedade brasileira

Toda essa reconstrução histórica serve para nos lembrar da urgência e da necessidade de se construir um projeto comprometido com os interesses imediatos e históricos das pessoas exploradas e oprimidas, uma alternativa de esquerda radical, contra a ordem dominante e não a seu favor.

3. A juventude brasileira hoje

Ser jovem… no Brasil

A juventude pode ser entendida como um sujeito coletivo, plural e heterogêneo, conectado pela experiência comum de serem pessoas que estão vivendo uma fase especialmente transicional das suas vidas. Um momento de construção de identidades, valores e visões de mundo. A juventude é portadora de diversas aspirações por um futuro diferente, o que já nos dá elementos para considerar o seu potencial político. Há nela uma maior disposição de se engajar na luta por uma outra forma de organização social, ainda mais diante de um sentimento de urgência de transformação de uma vida atravessada pela barbárie capitalista.

Tendo isso em vista, é preciso levar em consideração como a heterogeneidade da juventude se expressa no contexto de um país como o Brasil, localizado na periferia do capitalismo mundial. Identificar as especificidades desse setor nos ajuda a compreender a complexidade de perfil do/a jovem brasileiro. A partir disso, podemos então extrair algumas das implicações decorrentes em termos de como organizar esse sujeito coletivo.

Para analisar a juventude brasileira hoje, assim como para analisar a classe trabalhadora brasileira, é necessário considerar uma variedades de elementos. Trata-se de um perfil de maioria negra, maior número de mulheres e uma grande maioria é pobre e vive em famílias com renda per capita inferior a um salário mínimo. O Brasil é o país que mais mata LGBTs do mundo e o quinto país com a maior taxa de feminicídio. A taxa de assassinato da população negra é mais que o dobro da taxa de pessoas brancas, o que revela o genocídio em curso da população negra. É importante que analisemos essa trajetória de violência e extermínio de setores oprimidos como traços de continuidade de uma estrutura capitalista de passado colonial, fundamentalmente racista e patriarcal.

A heterogeneidade da juventude brasileira expressas as diversas manifestações da questão social no Brasil. Isto se reflete diretamente na diversidade das formas organizativas desse setor. De modo geral, costuma-se associar a juventude com o movimento estudantil, principalmente pelo seu peso e importância histórica. Porém, é preciso levar em consideração que a juventude está também em vários outros movimentos sociais e populares, como os movimentos feminista, negro, LGBT, antiproibicionista, anticárcere, antimanicomial, de educação popular, ecológico, sindical, cultural, de arquibancada, de religiosidade e outros.

O mundo do trabalho e a juventude

Como já observamos, vivemos sob uma ofensiva do capital que tem gerado um acirramento da luta de classes. No mundo do trabalho, isto tem se refletido, sob o rótulo da “flexibilização”, na precarização das relações de trabalho. Nesse cenário de crise, então, resta para a juventude, nos marcos da divisão internacional do trabalho capitalista, ocupar os postos de trabalho precários. Ou seja, para esse setor são reservados os trabalhos mais precários, com as piores condições, com baixa remuneração, jornada extensa e “flexibilização” (isto é, instabilidade e ausência de direitos trabalhistas). Um quadro que foi legitimado e acentuado com a Lei da Terceirização e a Reforma Trabalhista, ambas de 2017.

Uma outra face fundamental do estágio do capitalismo em que vivemos é o aumento exponencial do desemprego, o que gera o alargamento do exército de reserva. Isto cria uma grave situação que leva as pessoas trabalhadoras a se submeterem ainda mais a trabalhos extremamente precários. Para este setor resta a via da informalidade, o que é um sinônimo de trabalhos em péssimas condições. Um exemplo são os trabalhos mediados por plataformas e aplicativos (Uber, Rappi, IFood, etc.), pertencentes a grandes empresas que lucram cada vez mais às custas de trabalhadores e trabalhadoras. Inicialmente, o capital apresentou estas plataformas como uma possibilidade de gerar renda em um cenário de desemprego. Os trabalhadores e as trabalhadoras que buscassem esse caminho seriam “empreendedores”, e “trabalhariam para si mesmos”. Mentiras. Na verdade, esta foi um grande engodo para lucrar cada vez mais com a exploração destes e destas, desprotegidos de quaisquer direitos trabalhistas. Mas onde o capital aperta, a luta cresce: o movimento de trabalhadores e trabalhadoras de aplicativo soma-se à luta do precariado no mundo por mais direitos. Essa situação é conjunturalmente paradigmática: se o neoliberalismo destrói direitos, é combustível também para uma ampliação das lutas sociais e para a compreensão que dentro do capital não há solução civilizatória.

A juventude que mora na favela, em sua maioria negra, luta para combater e destruir as marcas herdadas da escravidão. Sua meta diária é sobreviver. Não houve governo no Brasil que buscou enfrentar o genocídio da juventude periférica. Pelo contrário, se é verdade que governos considerados de “esquerda”, como os governos petistas e sua estratégia de colaboração de classes, sancionaram na forma da lei o Estatuto da Igualdade Racial (2010) e o Estatuto da Juventude (2013), por outro lado também foram responsáveis pela militarização das favelas e pela aprovação da Lei de Drogas (2006), responsável por encarcerar ainda mais a juventude periférica. Ou seja, os meios fundamentais que sustentam esse genocídio em curso não foram enfrentados. E sabemos que há uma vasta parcela dessa juventude que encontra no tráfico de drogas a sua forma de subsistência.

Uma análise do ensino superior

O modelo de educação emancipadora não é uma realidade nem mesmo para os setores economicamente mais favorecidos da juventude. Nas renomadas instituições privadas de ensino superior, que se destacam com a sua grande estrutura, prevalece uma perspectiva de viés tecnocrata, sem nenhuma aspiração de formação crítica dos indivíduos. Assim, qualquer potencial transformador da educação e dos estudantes é minado.

No âmbito das instituições públicas, apesar de existirem melhores condições de organização para a luta do movimento estudantil e dos/das profissionais da educação, também se verifica o impacto da mercantilização. Tais instituições sofrem com o projeto neoliberal de sucateamento do ensino público. Vários problemas decorrem disso, como péssimas condições de estrutura, não investimento em pesquisa, baixa remuneração dos profissionais da educação e precarização de todas as esferas da vida social dos jovens estudantes. O que resulta em um uma série de obstáculos para a construção de uma formação integral de qualidade.

Mas é preciso frisar: para a maioria da juventude brasileira, não há acesso nem mesmo a essa educação tecnocrática e hiper-mercantilizada como a das instituições de ensino privadas. O que revela a profundidade da nossa desigualdade social. Demarcamos que nossa luta é pela ampliação do acesso do povo ⎼ de todo o povo ⎼ à universidade pública de qualidade. Este é o horizonte pelo qual lutamos, uma sociedade em que todos tenham acesso ao ensino superior, e que esse ensino se dê de maneira qualificada, com condições humanas e inclusivas.

Com o processo de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), o Financiamento Estudantil (FIES) e o Programa Universidade para Todos (ProUni), todos projetos dos governos petistas, houve de fato um aumento do acesso ao ensino superior, mesmo que uma boa parcela da juventude ainda tenha permanecido de fora. Porém, é preciso fazer uma análise totalizante de tais políticas, que leve em consideração suas principais contradições. No fundo, o que verificamos foi uma expansão mercantilizada do ensino superior. Seu vetor fundamental foi a política voltada para o enriquecimento das instituições de ensino privadas (isto é, os grandes oligopólios da educação). Programas como o FIES e o ProUni, além serem majoritariamente destinados a instituições de ensino precárias, geraram uma juventude que, na maior parte dos casos em subempregos ou mesmo sem perspectivas de trabalho, se viu afundada em dívidas e em um cenário de desemprego. No fundamental, foram medidas para fortalecer os chamados “tubarões de ensino”, destinando dinheiro público para o enriquecimento privado destas corporações. Entretanto, nossas críticas a esses mecanismos não nos levam a defender a sua supressão imediata. Em um contexto de cortes de direitos e nos investimentos sociais, onde as vagas de milhões de estudantes ligados ao ProUni e/ou ao FIES está em risco, nos colocamos abertamente contra a perda dessas vagas. Defendemos outro horizonte, mas não aceitaremos nenhum passo atrás!

No sistema público, para além de seus limites quantitativos evidentes (mais de 75% dos estudantes estão matriculados em instituições privadas), a expansão não veio acompanhada do devido financiamento e de políticas de permanência e assistência estudantil. Isto foi observado, por exemplo, no caso do REUNI. Mas de modo geral a ausência de políticas de assistência estudantil gerou um grande índice de evasão das universidades públicas.

Na pós-graduação, a situação de precarização não é diferente. As bolsas não são reajustadas desde 2013 e são, constantemente, cortadas. O governo Bolsonaro, inimigo público da ciência, tentou aprovar este ano a Portaria 34, que reduziria os recursos justamente nas regiões de Programas em que o investimento seria mais necessário. As taxas de depressão em estudantes de pós-graduação, mal remunerados e ultra precarizados, é seis vezes maior que a média, e o desemprego entre mestres e doutores no país chega a 25%. O projeto de destruição da pós-graduação e da ciência objetiva manter a subalternidade do país ao imperialismo, não nos garantindo autonomia científica.

Em resumo, mesmo ao analisar uma parcela da juventude que, em tese, tem melhores condições de vida por ter acessado o ensino superior ⎼ público ou privado ⎼, a precarização ainda se expressa de maneira evidente pela forma mercantilizada dessa expansão. O que revela a ausência de um compromisso com a democratização efetiva da educação. No fim das contas, resta para a juventude brasileira, ao término de uma graduação extremamente sacrificante, enfrentar um mercado de trabalho incapaz de incorporá-la com dignidade ou mesmo de absorvê-la.

Desafios para organizar a juventude brasileira

Nosso diagnóstico nos revela então uma juventude extremamente heterogênea. Ela é parte fundamental do grupo de pessoas exploradas e oprimidas que constituem o sujeito revolucionário do século 21. Não nos enganemos, estamos diante de uma realidade muito mais complexa do que a que se verificava no quadro da Revolução Russa de 1917. A precarização das condições de vida e de trabalho ⎼ intensificada ao ser associada com as diversas formas de opressão ⎼ aumenta as possibilidades de reflexão e tomada de consciência com relação à condição de classe explorada. Isto cria condições mais favoráveis para se fortalecer na juventude uma maior aspiração pela transformação social radical, pela construção de um outro mundo.

Porém, este mesmo cenário provocado pelo capitalismo coloca condições objetivas e materiais (por exemplo, a falta de tempo disponível) que aumentam os desafios para a organização coletiva destes setores precarizados. Tratam-se de obstáculos materiais ligados à sua própria sobrevivência e subsistência. Além disso, a ideologia burguesa dominante disputa cotidianamente a consciência de todos nós. Neste caso, não é diferente: ela alimenta e reforça ilusões de que as respostas para os problemas sociais destes/as jovens podem ser encontradas no plano individual. Em outras palavras, reforça o individualismo. Diante disso, é nossa tarefa criticar e combater essa falsas soluções apontando como alternativa a organização coletiva e o engajamento comprometido com as lutas sociais e políticas das pessoas exploradas e oprimidas. Para avançarmos nesta disputa com o capitalismo, precisamos buscar constantemente formas organizativas que consigam dar conta das distintas realidades e dificuldades da juventude.

Toda a análise que fizemos até aqui deve contribuir diretamente para a formulação de um programa que possa expressar os interesses e reivindicações fundamentais da juventude brasileira. Do perfil que traçamos, devemos extrair as implicações organizativas decorrentes. São várias questões, sobre as quais devemos estar em permanente reflexão. Fazer o exercício cotidiano de pensar os caminhos adequados para os nossos objetivos de luta e de organização desta juventude. Para isso, devemos levar em consideração os seguintes pontos:

i) É preciso que a nossa atuação vá para além dos muros do movimento estudantil universitário. O que significa não só desenvolver trabalhos no movimento secundarista e nos diversos projetos de educação popular, mas também em todos os outros movimentos nos quais esta juventude se organiza para lutar por seus interesses: movimento antiproibicionista, anticárcere, antimanicomial, ambiental, de agroecologia, de religiosidade, de arquibancada/torcida organizada, cultural, entre outros;

ii) Considerando que a parcela da juventude inserida em instituições de ensino públicas é ainda minoritária, devemos trabalhar visando também a organização de militantes e movimentos nas instituições de ensino privadas, especialmente as mais precarizadas. Para isso, é preciso buscar construir formulações que se proponham a compreender as especificidades e transpor os limites institucionais desses espaços;

iii) Nossa organização será composta por pessoas diversas com relação a etnia/raça, gênero e sexualidade. É fundamental buscar garantir instâncias de auto-organização de mulheres, negros/as e LGBTs. Tais instâncias devem funcionar também como mecanismos de fortalecimento destes setores, para dentro e para fora da organização. Também terão o papel de criar as condições para que estes grupos sejam os sujeitos principais da elaboração de políticas de combate às opressões na sociedade e também dentro da organização. Além disso, o fortalecimento destes grupos também melhora suas condições para participar plenamente das formulações políticas gerais da organização;

iv) Devemos buscar formas organizativas capazes de atenuar ao máximo possível as consequências da falta de tempo que atinge boa parte da juventude trabalhadora. Para isso, devemos ter compreensão e solidariedade diante dessa realidade, sem negligenciar a importância da responsabilidade, do compromisso e da disciplina militante na distribuição e no cumprimento de tarefas. É assim que poderemos encontrar saídas coletivas para garantir a contribuição de militantes com maiores limitações materiais e de tempo;

v) Nossa educação é precarizada e muito distante de um modelo ideal emancipador. Partiremos sempre de acúmulos desiguais, determinados em boa parte por questões sociais. Por isso, mas também como mecanismo de democracia interna e visando qualificar a nossa intervenção na realidade, é preciso garantir e desenvolver a formação política de nossos militantes, sempre nos orientando pela concepção fundamental de práxis ⎼ a unidade entre a teoria e a prática.

4. Juventude, explorados e oprimidos em movimento: que formas de luta?

A urgência histórica da transformação social e o engajamento coletivo

Na periferia do sistema capitalista, o futuro da classe trabalhadora e da juventude é atravessado pelo medo, pela insegurança e pela falta de esperança. Predomina a ausência de perspectivas. A juventude é hoje um setor da classe trabalhadora majoritariamente destinado a ocupar postos de trabalho precários, que não atendem às nossas necessidades de viver de forma digna.

Mas o presente é tão insuportável e o futuro tão sombrio, que a necessidade de transformar a realidade social se apresenta de maneira urgente. Por essa razão, setores expressivos das pessoas exploradas e oprimidas se colocam em movimento, em luta por seus interesses imediatos e históricos. Encontram na organização coletiva para as lutas um caminho para se fortalecer e estabelecer laços de solidariedade social, ao passo em que buscam defender seus direitos e obter conquistas. É assim que proliferam diversos e plurais movimentos sociais e populares, organizando pessoas em torno de reivindicações fundamentais, ainda que muitas vezes imediatas e parciais.

Desde junho de 2013, os movimentos sociais e populares entraram em ascensão e se fortaleceram em meio à resistência, com destaque para alguns setores específicos, como o movimento estudantil e o movimento de mulheres. Em 2015 e também depois, as mulheres jovens estiveram à frente da primavera feminista contra a retirada de direitos. Em 2016, foi a juventude ⎼ liderada pelas mulheres jovens e meninas ⎼ que ocupou as escolas e universidades brasileiras em defesa de uma educação pública, gratuita e de qualidade. Em abril de 2017, vimos uma das maiores greves gerais da história recente do país: milhões de trabalhadores e trabalhadoras se recusaram a trabalhar como forma de se manifestarem em defesa da previdência pública.

Em 2018, vivemos um forte movimento contra a eleição de Bolsonaro, que foi liderado por mulheres ao redor de todo o Brasil (“Ele não!”). Em 2019, o governo Bolsonaro enfrentou novamente nas ruas a força de centenas de milhares de pessoas trabalhadoras, estudantes e jovens no geral em um movimento de defesa da educação pública. O ano de 2020 já se encontra hoje marcado pelas diversas manifestações contra Bolsonaro, por parte de pessoas e famílias que, mesmo em distanciamento físico, não deixaram de expressar sua indignação com a irresponsabilidade do governo desta figura que, por enquanto, ainda ocupa a presidência da república.

A juventude também se articulou na luta em defesa do meio ambiente. No governo Dilma Rousseff, os protestos contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte e as políticas pró-latifúndio da ministra Kátia Abreu. No governo de Michel Temer, contra os projetos que facilitam o uso de agrotóxicos e o Novo Código Florestal. E no governo Bolsonaro, levantes em defesa da Amazônia, do Pantanal e do litoral nordestino. Essa é uma luta para esta juventude e para as juventudes do porvir, uma luta pelo direito ao futuro da humanidade no nosso planeta.

Na América Latina como um todo, também é possível observar um crescimento concomitante das lutas. No Chile, o ano de 2019 ficou marcado por intensos protestos contra os ataques neoliberais estabelecidos desde a ditadura de Pinochet na década de 70, forçando o governo liberal de Piñera a abrir um novo processo constituinte. O mesmo sentimento anti-austeridade levou a classe trabalhadora a avançar contra os ataques de Lenin Moreno no Equador. No mesmo ano, o golpe de Estado que depôs Evo Morales na Bolívia levou a uma forte organização dos movimentos populares, alinhados aos povos indígenas. Na Argentina, os embates contra o governo liberal de Macri somaram-se às lutas das mulheres em um dos maiores movimentos pela descriminalização do aborto que o mundo já viu. Em todo o continente, a luta dos/as explorados/as e oprimidos/as avança, unindo a classe trabalhadora, as mulheres, os negros, as LGBTs e os povos índigenas na linha de frente tanto contra o capitalismo como contra o colonialismo.

Diversidade e heterogeneidade entre as pessoas exploradas e oprimidas

No momento histórico em que estamos, uma lição fundamental tem cada vez mais sido assimilada. A classe trabalhadora e também a juventude não são compostas por uma massa homogênea e indiferenciada. Pelo contrário, são um sujeito coletivo diverso. Além disso, é hoje ainda mais estratificada em termos sociais e econômicos.

Se hoje isso é mais intenso e aparece de maneira mais evidente, por outro lado a verdade é que as mulheres, as pessoas negras e LGBTs sempre estiveram na linha de frente das lutas pela emancipação da classe trabalhadora. Mas no século 21, mais do que nunca, evidencia-se a centralidade estratégica da luta contra as opressões. São lutas fundamentais e prioritárias para a construção de uma sociedade livre e igual. Estão objetivamente fundadas em bases materiais e vinculadas com a dinâmica da exploração capitalista. Não são lutas “identitárias”, embora a própria questão da identidade desempenhe nestas lutas um papel não desprezível ⎼ aliás, o mesmo ocorre entre as pessoas trabalhadoras de maneira geral, que também desenvolvem uma identidade de classe como forma de reconhecimento recíproco e coletivo.

Assim como devemos lutar contra as leis da sociedade burguesa que assolam e punem de maneira seletiva a juventude do nosso país, é fundamental nos posicionarmos firmemente pela defesa de nossos direitos reprodutivos. A realidade é conhecida por todas e todos nós: as ricas abortam e as pobres, principalmente negras, morrem. Lutamos por uma sociedade livre, pelo aborto como direito e pela vida das pessoas grávidas.

Perspectiva totalizante, unidade na diversidade

Uma questão fundamental de se compreender neste quadro é a necessidade de se trabalhar com uma perspectiva de totalidade, que busque construir a unidade na diversidade. Em outras palavras, apesar das múltiplas divisões sociais que atravessam o conjunto das pessoas exploradas e oprimidas, que agravam a sua competição e geram desigualdades internas, devemos buscar reunir as demandas particulares e enfrentar as diferenças em uma luta comum pela superação da dominação do capital. Isto significa unificar a classe para combater o sistema capitalista, articulando isso com o enfrentamento da pluralidade de dominações que estruturam a nossa sociedade: o machismo, o racismo e a LGBTfobia. Nosso objetivo fundamental é trabalhar para a convergência estratégica de todas estas lutas, entendendo que o combate às opressões é fundamental para a organização da nossa classe e para a superação da ordem capitalista. Nos contrapomos a perspectivas segundo as quais estas lutas seriam secundárias, ou então que seriam uma questão para “depois que a revolução triunfar”.

Por isso, é necessário que uma organização orientada pela perspectiva da emancipação humana busque organizar a indignação destes setores. É preciso construir e apresentar em meio às lutas um programa que sirva como referência para o tipo de sociedade que queremos construir, que articule as lutas contra a exploração e opressão e que funcione como instrumento de mobilização, sintetizando as reivindicações e interesses fundamentais do conjunto das pessoas exploradas e oprimidas.

Se o sujeito revolucionário da atualidade é constituído por esta diversidade social (trabalhadores e trabalhadoras, mulheres, LGBTs, negro e negras…), é central compreender como essas lutas estão articuladas para propor uma alternativa de sociedade. Isso é ainda mais verdadeiro para as novas gerações de lutadores e lutadoras. A juventude de hoje sente com ainda mais força esta necessidade de articulação.

Diversidade de lutas e movimentos

Mulheres jovens e meninas estão à frente da luta contra as mudanças climáticas ao redor do mundo. No Brasil e na América Latina, os povos indígenas também se colocam na linha de frente da defesa do planeta. Diante do racismo ambiental, as trabalhadoras e trabalhadores negros sentem diretamente os impactos da destruição capitalista nas suas condições de vida. Dessa maneira, o ecossocialismo é um horizonte estratégico chave e que incorpora a luta contra as opressões.

O capitalismo é predatório e ameaça a existência da vida humana, mas essa ameaça é ainda mais grave para os grupos explorados. A luta pela terra, a construção de movimentos populares e de agroecologia são canais de diálogo da juventude com trabalhadores e trabalhadoras do campo e povos originários. Por essas razões, ao mesmo tempo que se apresenta como um projeto anticapitalista para o campo, o ecossocialismo é uma perspectiva de mundo radical para a juventude que não vê perspectiva de futuro e de vida digna em um planeta destruído pelo avanço capitalista.

Vemos nas lutas antiproibicionista, anticárcere e antimanicomial uma convergência para combater os problemas que atingem a juventude brasileira, majoritariamente negra e trabalhadora. Estima-se que 30% das pessoas privadas de liberdade no Brasil estejam detidas em função da Lei de Drogas, que implicou uma explosão no encarceramento da juventude. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. Essa população é em sua maioria jovem, trabalhadora, precarizada, desempregada, moradora das periferias e negra. A luta antimanicomial, da mesma forma, pauta o reconhecimento da condição de sujeito e de sua autonomia, contra a patologização e segregação social. Entendendo as conexões destas lutas e percebendo que elas se reúnem por meio da necessidade de combater a violência de Estado, que assassina e prende a juventude pobre e negra do nosso país, e afasta do convívio social as pessoas neuroatípicas, compreendemos essa frente de lutas como estratégica para a construção e a conquista de uma sociedade emancipada.

Como já indicamos, boa parte da juventude está fora das universidades. Uma parcela significativa sequer conclui o ensino básico. O acesso ao ensino que se tem no Brasil é majoritariamente marcado por uma educação mercantilizada, com universidades e escolas públicas cada vez mais sucateadas em prol do ensino privado. As empresas privadas que atuam no ramo educacional, ligadas a grandes grupos, absorvem cerca de 80% dos 8,4 milhões de estudantes brasileiros e investem cada vez mais no chamado “ensino à distância”, como mais uma forma de precarização das relações de trabalho e busca por maiores lucros.

O movimento estudantil é um espaço central para disputar a consciência de vários/as jovens brasileiros, reunir suas demandas e mobilizá-los, ainda que esteja hoje estruturado sobretudo nas universidades públicas. Se organiza através de suas entidades gerais e de base, como diretórios centrais estudantis, centros acadêmicos e mesmo coletivos estudantis diversos (de curso, de combate às opressões, entre outros). Todos esses espaços são importantes de serem construídos, bem como os diversos fóruns ligados à União Nacional dos Estudantes (UNE), que embora seja uma entidade que infelizmente se encontra há muito tempo profundamente burocratizada e incapaz de mobilizar o corpo estudantil, ainda nos fornece espaços para disputar corações e mentes.

Mas é necessário compreender a luta pela educação para além destes marcos. A atuação por fora da institucionalidade tradicional possui também o potencial de se conectar com as camadas populares, especialmente através de projetos de educação popular. É crucial lutar por um projeto de educação pública, gratuita, universal e socialmente referenciada. Em outras palavras, uma educação pública, democrática, popular e crítica.

Construir os movimentos sociais, de maneira orgânica e democrática

Nossa luta é por uma sociedade sem pessoas exploradas e exploradoras, oprimidas e opressoras. Mas, para isso, é fundamental pautar e construir a transformação social desde já. Neste sentido, entendemos que a construção dos mais diversos movimentos sociais e populares ⎼ de maneira democrática e respeitando a sua autonomia ⎼ é estratégica para nós. E apostamos na força dos movimentos feminista, negro, LGBT, ecológico, antiproibicionista, anticárcere, antimanicomial, estudantil e de educação. Todos estes movimentos, assim como vários outros, contém no presente o embrião do que queremos construir no futuro: uma sociedade livre de toda forma de exploração e opressão.

5. O papel de uma ferramenta política de juventude neste contexto

Diversidade de instrumentos, especificidade da ferramenta política

Depois de estabelecer as bases para compreender o momento histórico em que vivemos, de analisar o que é a juventude brasileira e como o conjunto das pessoas exploradas e oprimidas se organiza em suas diversas frentes de luta, nos resta agora refletir sobre mais uma questão: qual é então o papel de uma organização política neste contexto? Esta discussão é fundamental, porque para nós marxistas não basta apenas interpretar o mundo, é preciso transformá-lo; e o papel de uma organização política é precisamente esse: ser um instrumento prático para fazer nascer um mundo novo, radicalmente distinto deste de violências, misérias e desigualdades. É este o horizonte que regula a nossa ação e organização.

Devemos ter clareza de que existem diversos instrumentos de organização e de luta, e que cada um deles cumpre diferentes funções em diferentes contextos. Como exemplos, podemos citar os sindicatos, as associações, os movimentos sociais e populares no geral, os partidos políticos, centros acadêmicos, grêmios estudantis, coletivos estudantis, coletivos culturais, entre outros. Estas diversas ferramentas não são todas iguais entre si e não exercem o mesmo papel.

Em síntese, as distintas organizações políticas expressam distintos projetos de sociedade. Enquanto tais, são projetos globais e totalizantes, que pensam a sociedade de conjunto. Deste ponto de vista, têm uma função diferente daquela dos movimentos sociais, embora seja crucial aprender com a experiência de todos eles e construí-los organicamente. Os movimentos sociais, sem deixarem de ser fundamentais, se restringem a reivindicações parciais (não por isso menos importantes!) cujo foco está voltado para a organização e mobilização de determinados sujeitos sociais ao redor de suas demandas específicas e ⎼ no mais das vezes ⎼ concretas e imediatas. Pensemos por exemplo no movimento de moradia, sindical, estudantil, e outros…

Já a disputa de projetos totalizantes se dá no terreno da luta política, que não se confunde com o das esferas econômica e social. De maneira geral, estes projetos respondem a duas perguntas fundamentais: “o que” se quer e “como” chegar lá. Isto é, ao mesmo tempo, buscam estabelecer um horizonte regulador e hipóteses estratégicas que indiquem o caminho para se alcançar tal horizonte. Podemos dizer que o nosso horizonte é o da (auto)emancipação do conjunto dos explorados e oprimidos: a construção de uma sociedade sem classes e sem dominações, que não seja atravessada pela desigualdade e pela violência sistêmicas, tal como vivemos hoje no capitalismo.

Algumas noções estratégicas ⎼ tomada do poder, transformação da ordem social e crise revolucionária

No entanto, pelo modo como se organiza a dominação de classe no interior da sociedade burguesa, sabemos que esta emancipação só será possível com a derrubada do poder das classes dominantes. Isto não é um mero desejo, mas uma necessidade histórica… O que significa, em outras palavras, que é necessário destruir o Estado burguês ⎼ o instrumento de dominação da burguesia, que concentra o seu poder político ⎼ e substituí-lo por um outro tipo de “Estado” (na verdade, um Estado que não é mais propriamente um Estado…); isto é, substituí-lo pela auto-organização popular: o poder nas mãos do conjunto das pessoas exploradas e oprimidas, organizadas de baixo para cima. É a isso que nos referimos quando dizemos que “tomar o poder” ainda é (e seguirá sendo) uma tarefa histórica dos trabalhadores, trabalhadoras e pessoas oprimidas de maneira geral e, portanto, deve estar no centro da nossa estratégia.

Mas o poder político nas mãos da classe trabalhadora deve ser entendido como um meio para levar a cabo a supressão da ordem existente (burguesa) ⎼ acabando com as relações sociais capitalistas ⎼ e para construir, através de um processo permanente, uma nova forma de organização social. Ou seja, estamos falando de um meio para efetivar as transformações sociais que almejamos. Parte central disso é a destruição da propriedade privada (dos meios de produção, comunicação, etc.) e a instituição da propriedade social, que se expressa na autogestão social: a associação livre dos trabalhadores e trabalhadoras. Neste duplo sentido, como derrubada do poder político da burguesia e como transformação das relações sociais burguesas (capitalistas), somos levados a reconhecer em pleno século 21 a atualidade histórica da revolução. Uma revolução que deve ser permanente.

Mas a tomada do poder só se torna uma possibilidade efetiva quando estão dadas determinadas condições particulares. Isto é, não é possível fazer isso a qualquer momento, de acordo com a nossa mera vontade. Mas somente quando se verifica uma determinada conjuntura, em que se manifesta uma crise generalizada da sociedade burguesa e do sistema de dominação. Em uma conhecida formulação: quando os de cima não podem mais governar como antes; quando os de baixo não suportam mais ser oprimidos como antes; e quando essa dupla impossibilidade se traduz em uma súbita efervescência das massas. É o que chamamos de crise revolucionária.

A política como arte estratégica… e sua temporalidade própria

Mas a crise revolucionária não se resolve automaticamente em uma revolução bem-sucedida. Pelo contrário, é o ponto crítico de uma situação de instabilidade, um momento decisivo da luta. E como toda luta, seu desfecho é incerto e depende da força dos sujeitos em disputa. É razoável imaginar que as classes dominantes levarão até as últimas consequências seus esforços de reação contrarrevolucionária. Portanto, as pessoas exploradas e oprimidas precisam construir a sua força material se quiserem vencer.

Para além dos seus instrumentos de luta e auto-organização, a mediação exercida pela organização política é fundamental neste contexto. Pois é quem, partindo de uma perspectiva totalizante, pode oferecer uma orientação política para esta luta decisiva e organizar as forças materiais para a tomada do poder.

Partindo desta perspectiva, devemos pensar a política como uma “arte estratégica”, como uma arte da decisão e da ação, dos momentos propícios e das oportunidades a serem agarradas, cuja temporalidade é a de um “tempo quebrado”, com ritmos próprios, acelerações e desacelerações (diferente de um “tempo homogêneo” e linear). Nestes marcos, a organização política deve ser entendida como um operador estratégico, que analisa a dinâmica e o desenvolvimento da luta de classes, buscando apreender os seus distintos momentos, e articula uma força coletiva capaz de intervir na luta e influenciar o seu desfecho. Afinal, é a humanidade que faz a história.

O programa e a memória histórica

Logo, vemos que uma organização política deve expressar um projeto estratégico de emancipação. Este projeto indica um horizonte e aponta os caminhos para alcançá-lo. Isto é sintetizado em um programa, do qual a organização política é portadora ⎼ é o seu veículo. E, assim, deve articular em torno de si uma força coletiva que compartilhe uma visão histórica comum e que seja capaz de influenciar e incidir sobre as lutas sociais e políticas. Na prática, ela busca então se construir como uma referência política, disputando o seu projeto de sociedade em meio às lutas dos explorados e oprimidos.

É importante registrar dois aspectos. Primeiro, que este projeto estratégico de emancipação não é arbitrário, mas é o resultado de uma assimilação das lições extraídas da própria experiência histórica de luta das pessoas exploradas e oprimidas no interior do capitalismo. Deste ponto de vista, a organização política exerce também uma função de memória histórica, preservando através de seu programa essas lições. Além disso, também serve para combater a ideologia dominante, a alienação e enfrentar o desenvolvimento desigual e descontínuo da atividade militante e da consciência de classe das pessoas exploradas e oprimidas. Funciona, portanto, como um fio de continuidade política que busca mantê-las no maior grau possível de atividade e de consciência.

Por fim, uma última consideração. O programa de uma organização está em construção permanente. É um instrumento para a transformação da realidade e tem de ser submetido ao teste prático das lutas do presente. Portanto, é necessariamente aberto e algo que se desenvolve coletivamente, através da experiência prática. Por isso, os elementos que levantamos aqui devem ser entendidos como guia e referência geral para a nossa intervenção na realidade. São hipóteses para nortear a nossa luta coletiva. Uma série de outras questões permanecem em aberto… e só a experiência, o debate e a prática irão criar as condições para a sua resolução.

Uma ferramenta política de juventude… para quê?

Nosso coletivo é uma ferramenta política de juventude. Buscamos articular e organizar jovens ao redor de um projeto estratégico de emancipação. Como apontamos, isso se difere de um movimento social na medida em que expressamos um projeto global e totalizante de sociedade, e visamos organizar em torno dele uma força material para travar de maneira estratégica a luta política. O que não significa que os diversos movimentos sociais não sejam nossos aliados fundamentais. Pelo contrário, não só são nossos aliados como estamos envolvidos ativamente na sua construção.

O central de militar em uma ferramenta política é somar nossas forças junto a uma coletividade para fazer avançar a luta, a consciência e a organização dos explorados e oprimidos. Envolve se organizar sobre a base da liberdade de discussão e da unidade na ação; isto é, buscar a máxima unificação possível nas nossas ações e intervenções democraticamente decididas. Implica atuar como “tribunos do povo”, ou seja, militantes preparados para reagir diante de toda e qualquer manifestação de opressão, seja contra que camada do povo ela se der. Significa também contribuir com a construção orgânica e democrática dos diversos movimentos sociais e populares a partir deste projeto coletivo, do qual nos tornamos portadores. É, por fim, passar a pensar e agir estrategicamente para intervir decisivamente nas lutas sociais e políticas.

Nossos eixos de organização

Em termos mais concretos, buscamos nos organizar ao redor de três eixos fundamentais: a) intervenção cotidiana ⎼ traduzida em termos práticos no trabalho de base (nos diversos movimentos sociais) e nas tarefas de agitação e propaganda de nosso programa; b) formação política ⎼ educação teórica nos marcos do marxismo revolucionário e da tradição marxista em geral (com abertura para outras referências críticas que se mostrem úteis para orientar a nossa ação) e educação prática através do engajamento e envolvimento com as lutas, além do planejamento, divisão e execução de tarefas; c) mobilização ⎼ a construção, composição e disputa democrática de orientação das mais diversas mobilizações em defesa dos interesses dos explorados e oprimidos.

6. Princípios programáticos

São nossos princípios programáticos:

i) a defesa incondicional dos interesses das pessoas exploradas e oprimidas, de sua independência política perante as classes dominantes e o Estado e da autonomia de seus instrumentos de auto-organização, sob a inspiração de uma perspectiva antifascista e anticapitalista;

ii) a defesa do meio ambiente e da natureza contra a sua predação e destruição por parte dos interesses do capital, a partir de uma perspectiva ecossocialista;

iii) a defesa dos bens comuns da humanidade (naturais e culturais), dos serviços públicos e bens de primeira necessidade contra a mercantilização e a privatização (inclusive do espaço público);

iv) a luta pela transformação das relações de propriedade (dos meios de produção, de troca, de comunicação e dos saberes);

v) a luta contra todas as formas de opressão e dominação, visando o fim do racismo, do machismo e da LGBTfobia;

vi) a luta contra o sistema capitalista mundial e a sociedade de classes, visando a sua transformação radical através de uma transição iniciada pela tomada do poder por parte das pessoas exploradas e oprimidas;

vii) a luta contra todas as expressões da violência social, seja por parte do Estado ou de agentes privados, contra a classe trabalhadora e setores oprimidos, especialmente nas formas da repressão política, do encarceramento em massa e do extermínio social de pessoas jovens e trabalhadoras pobres, negras e periféricas;

viii) a luta contra a chamada “guerra às drogas”, contra o proibicionismo como política de drogas, contra o punitivismo de modo geral e em defesa da abolição do sistema penal;

ix) a luta contra todas as dimensões da mercantilização da educação e da saúde e de sua subordinação aos negócios, ao que opomos a defesa de uma educação e saúde públicas, democráticas e populares;

x) a luta em defesa dos povos tradicionais e originários, através de uma construção lado a lado, conjunta e solidária;

xi) a subordinação de toda e qualquer intervenção no interior das instituições do Estado (por exemplo em processos eleitorais) e mesmo de entidades representativas no geral ao fortalecimento estratégico da consciência, da organização e da mobilização das pessoas exploradas e oprimidas;

xii) a construção orgânica dos mais diversos movimentos sociais e populares, contribuindo com a sua organização de base e disputando de maneira democrática a sua orientação, respeitando por princípio a sua autonomia, assim como evitando e combatendo práticas “dirigistas”, “hegemonistas” e sectárias em tais movimentos e nas relações entre as distintas organizações políticas;

xiii) a busca permanente pela unificação das pessoas exploradas e oprimidas através da ação e da luta por seus interesses e reivindicações, trabalhando também para articular e consolidar no interior deste processo a unidade da esquerda radical e socialista, além de promover espaços sérios de debate e formação nos movimentos e entre as diferentes organizações;
xiv) a defesa crítica do legado das experiências revolucionárias do passado, sem fazer concessões aos diversos processos de degeneração burocrática que abriram o caminho para as restaurações capitalistas posteriores;

xv) a defesa do marxismo revolucionário, da tradição marxista em geral, do internacionalismo e do comunismo contra as desfigurações estalinistas do passado, e todas as tentativas de isentá-las e reabilitá-las no presente, e contra as caricaturas e deturpações dos liberais e conservadores.

setembro de 2020.

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